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Livraria Cultura

Atualizado: 31 de out. de 2022

Pode-se dizer que um livro é um objeto delicioso? Creio que sim. É o caso de “O Livreiro” (Planeta, 218 páginas), de Pedro Herz, o empresário que dirige a Livraria Cultura — talvez a melhor do Brasil. Trata-se de um pequeno tesouro.

Pedro Herz, de 77 anos, conta como surgiu a livraria, que tem 70 anos, e como está se processando a sua modernização. A rede conta com 17 lojas, 1,5 mil funcionários, 5 milhões de clientes e 9 milhões de produtos. Números que a colocam acima de algumas indústrias importantes, mas cuja automação reduziu postos de trabalho. Com a aquisição da Fnac, a Cultura terá mais 12 lojas — uma delas no shopping Flamboyant, em Goiânia — e 600 funcionários.

Os pais de Pedro Herz, Kurt e Eva Herz, vieram para o Brasil, em 1939, para não cair nas mãos cruentas dos nazistas de Adolf Hitler. Trata-se de uma família judaica.

Pedro Herz (que aparece na capa do livro) conseguiu contar, de maneira deliciosa, a história da Livraria Cultura, criada por sua mãe, há 70 anos

Para melhorar as finanças da casa, a empreendedora Eva Herz criou a Biblioteca Circulante, em 1947, na Alameda Lorena, nos Jardins. A alemã comprou dez livros em alemão — como “O Diário de Anne Frank” e “Doutor Jivago”, de Boris Pasternak — e começou a emprestá-los aos compatriotas.

A Biblioteca Circulante, para diversificar o público e o negócio, passou a emprestar livros de escritores brasileiros, como Machado de Assis, Jorge Amado, Erico Verissimo e Raquel de Queiroz. Na casa não cabia mais os livros e seus moradores. Estava atulhada. A família teve de alugar outra residência para morar.

Sob pressão dos leitores, Eva Herz abriu a Livraria Cultura, que funcionava na sua casa, sem abandonar a Biblioteca Circulante. Certa feita, um cliente perguntou se havia um exemplar do livro “A Nossa Vida Sexual”, do médico alemão Fritz Kahn. Kurt Kerz perguntou para a mãe de Pedro Herz, que estava na cozinha: “Que­rida, ainda temos nossa vida sexual?” Há outras histórias interessantíssimas (que não estão relatadas neste texto).

Mulher cosmopolita, Eva Herz sugeriu que o filho Pedro Herz viajasse pela Europa, em 1958. Depois das essenciais aulas práticas com a mãe, aprendeu, com o apoio de europeus, a ser um livreiro.

Na Suíça, conheceu Otto Frank. Ele era amigo de Erich e Ruth, tios de Pedro Herz. O pai de Anne Frank jantava na casa dos parentes do jovem brasileiro. “Era um homem simpático, educado, falava sobre tudo. Mas jamais o vi repassando o fim de sua família em campos de concentração, nem particularmente mencionar a perda de sua filha.”

Em Paris, trabalhou como balconista num botequim em Saint-Germain-des-Prés. Em Londres, mesmo tremendo, foi locutor da BBC durante alguns meses. Depois, prestou serviço para um contrabandista de macacos. Sem saber, inicialmente, do que se tratava.

Passou quase dois anos na Europa, trabalhando e divertindo-se. Eva e Kurt Herz não mandavam dinheiro. Inspirado pelos pais, Pedro Herz adotou o lema: “Faça, não espere que façam por você. Se errar, não tem problema, conserte. Se não errar, vá adiante. Mas faça”.

Ao voltar para o Brasil, Pedro Herz trabalhou em vários lugares, como a Editora Abril. Ajudou a elaborar o “Guia Quatro Rodas”.

Livraria Cultura

Depois de 22 anos alugando livros, os Herz decidiram abrir a Livraria Cultura no Conjunto Naci­onal, em 1969. Eva Herz dizia que a Paulista era a “avenida do futuro”. Pedro Herz deixou a Abril e associou-se à mãe. Fecharam a Biblioteca Circulante, pois o novo negócio era vender e não emprestar livros.

Uma das funções de Pedro Herz era negociar com as editoras, como Cultrix, Perspectiva, Zahar, Brasi­liense, Melhoramentos e Companhia Editora Nacional.

A Livraria Cultura conta com excelente acervo, em várias línguas, e sua arquitetura interna prima pela beleza e inovação. É um templo acolhedor

Sob o tacão do AI-5, que levara a “dita” a ser mais “dura”, até a Livraria Cul­tura começou a ser vigiada por agentes do regime militar. Um araponga encrespou com o livro “Cuba de Fi­del: Viagem à Ilha Proibida”, de Ig­ná­cio Loyola Brandão. No seu relatório, escreveu que o livro-reportagem era “desinteressante”. Pedro Herz a­cha que o agente “errou feio”. Para a é­poca, talvez não fosse. Hoje, não tem importância alguma e chega a ser ingênuo.

Exemplares de um livro sobre o malufício de Paulo Maluf foram apreendidos, na Livraria Cultura, por agentes da ditadura. A obra foi escrita por José Yunes, que denunciava corrupção no governo do político do PDS. Envolvido no escândalo lavajatista, José Yunes é o José Carlos Bumlay do presidente Michel Temer. O primeiro-amigo.

Em 1973, os dirigentes da Livraria Cultura decidiram importar livros sem intermediários. Pedro Herz, que fala alemão fluentemente, passou a frequentar a Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha. O livreiro diz que não abre mão de negociar olhando nos olhos de seus interlocutores. Com a internet, “não haveria a necessidade de pagar caro e ir tão longe para ter encontros pessoais. Ainda assim, não abro mão deles. As características individuais contam muito numa transação comercial”.

Em 1978, Pedro Herz associa-se ao publicitário Ricardo Ramos, filho de Graciliano Ramos, e ao jornalista Gilberto Mansur na criação da HRM. A editora publicou pela primeira vez “Um Copo de Cólera”, de Raduan Nassar, e “Ópera do Malandro”, de Chico Buarque. O trio editou Hilda Hilst e Lygia Fagundes Telles. Ao “descobrir” que era mais livreiro do que editor, saiu da sociedade.

Pedro Herz: a Cultura é palco pra lançamentos de livros e, em seu teatro, peças teatrais

A Livraria Cultura começou com lojas menores no Conjunto Nacional. Depois, a família criou livrarias menores noutros lugares, mas não deu certo. Em seguida, decidiu abrir uma loja-âncora no Shopping Villa-Lobos, em São Paulo, em 2000. Lá, além dos livros, começou a vender CDs e DVDs. Pedro Herz pensou: “Melhor errar, e consertar, do que não errar, sem nunca ter tido a coragem de tentar”. Ele pediu ao arquiteto Fernando Brandão que pensasse uma livraria que “acolhesse” e “segurasse” — um lugar para “chegar e ficar” — os leitores por mais tempo. Uma das inovações foi a construção de um auditório — a primeira Sala Eva Herz. Abriram uma cafeteria terceirizada.

Os Herz abriram livrarias em Por­to Alegre (2003), em Brasília (2004) e em Recife (2005). Até chegarem a 17 li­vrarias. São tão bonitas que os arquitetos (Fernando Brandão e Marcio Kogan) que fizeram os projetos foram premiados nacional e internacionalmente.

A livraria que mais chama atenção do público é a do Conjunto Nacional. Mas nem sempre foi assim. Inicial­mente, funcionava em quatro salas. Quando o Cine Astor fechou, Pedro Herz começou a namorar o lugar. Aí o proprietário ofereceu-lhe o espaço.

Para resolver o problema do “de­cli­ve acentuado” da área, o arquiteto Fer­nando Brandão “bolou uma saída criativa: propôs fazer a loja em três ní­veis, sem perder o pé-direito magnífico”. A loja foi inaugurada em maio de 2017 e é um sucesso. Conta com o Teatro Eva Herz (onde assisti um belo es­petáculo de Olívia Byington). Li­vra­ria é o templo dos incréus, mas não ape­nas deles, claro (é ecumênica e de­mocrática). A Livraria Cultura, então, é um sucesso de público. Tornou-se inclusive local de turismo — como a belíssima El Ateneo, de Buenos Aires, e a Lello, no Porto, em Portugal.

José Saramago: o Nobel de Literatura postulou que, além de uma livraria, a Cultura é uma verdadeira obra de arte. “Uma catedral de livros”

No livro “O Caderno”, o escritor José Saramago, Prêmio Nobel de Literatura, escreveu: “A última imagem que levamos do Brasil é a de uma bonita livraria, uma catedral de livros, moderna, eficaz, bela. Uma livraria para comprar livros, claro, mas também para desfrutar do espetáculo impressionante de tantos títulos organizados de uma forma tão atrativa, como se não fosse um armazém, como se de uma obra de arte se tratasse. A Livraria Cultura é uma obra de arte”. Discordar quem há de?

A criançada adora a Livraria Cul­tu­ra (com aquele dragão simpático e be­lo) — um lugar lúdico, quiçá um parque de diversão. Mas há garotos que “manuseiam os livros sem cuidado, jo­gam os volumes onde bem entendem, andam sobre eles, chegam a rasgar páginas… e os pais não dizem nada!”, lamenta Pedro Herz, um civilizador. A livraria precisa arcar com o prejuízo.

O bom leitor se forma na escola, com professores orientando os alunos? Pedro Herz sugere que “o bom leitor se forma em casa”. Ele está certo, em parte. No geral, os pais, notadamente os que chegam cansados do trabalho, às vezes exaustivo, não leem e, mesmo que queiram, não sabem orientar os filhos. Portanto, não dá para radicalizar: a escola às vezes forma bons leitores. A professora So­ninha Santos, dos colégios Exter­na­to São José e Agostiniano, em Goiânia, é uma notável formadora de novos leitores. Talvez seja hors-concours.


 
 
 

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